Rolezinhos: os pobres estão afrontando sua invisibilidade
Em 2006, a socióloga Valquíria Padilha lançou um livro premonitório sobre os rolezinhos, Shopping Center: a catedral das mercadorias (Boitempo, 2006).
Saul Leblon
São Paulo - A socióloga Valquíria Padilha não se surpreendeu com o fenômeno dos rolezinhos. Professora de Sociologia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade , na USP de Ribeirão Preto, ela lançou em 2006 um livro premonitório, “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo, 2006). Nele sublinha o papel segregacionista desses bunkers do consumo que, em sua opinião jamais serão democratizados. Autora também de outras obras que remetem diretamente à busca de identidade implícita na adesão da juventude pobre aos rolezinhos (são dela: “Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito” (Alinea); “Dialética do lazer” (organizadora; Cortez) , Valquíria desabafa: a identificação de cidadania com consumo ‘é o fracasso da humanidade’. A seguir, trechos de sua entrevista a Carta Maior
Carta Maior: Shopping center -consumismo -desigualdade e exclusão urbana interligam-se há muito tempo nas grandes cidades brasileiras. Por que só agora a coisa explodiu na forma de rolezinhos?
Valquíria: Eu venho afirmando que os shopping centers são espaços privados travestidos de públicos desde que publiquei o meu livro “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo), em 2006. São espaços de compras que segregam, impedindo a entrada de quem não tem poder aquisitivo ou de quem não se adequa ao ambiente dos shoppings – seja pelo modo de se vestir ou pelo modo de agir. Recebi muitas críticas por afirmar isso. Agora estamos vendo as provas: pobres não devem compartilhar os shoppings centers com os ricos.
CM: O marketing da segurança dos shoppings traz a segregação no DNA?
Valquíria: Eles funcionam como os clubes privados, as escolas privadas, os hospitais privados: são bunkers onde as classes mais altas devem se sentir protegidas do mundo real que fica do lado de fora. Isso só é possível com a exclusão de todos aqueles que supostamente significam alguma ameaça, ou seja, que tragam a realidade do lado de fora – a desigualdade social - para essa ilha da fantasia. Shoppings são templos do consumo para poucos. Sempre foi assim no Brasil, desde os anos 1960-70 quando tivemos nossos primeiros shoppings.
CM- O problema não está só no Shopping...
Valquíria- Tudo isso ganha um contorno próprio quando analisamos a organização urbana de nossas cidades brasileiras - indubitavelmente pautada na segregação social e econômica: há os espaços de quem tem dinheiro e há os espaços de quem não tem. Quem não tem normalmente trabalha para os que têm. No caso dos shoppings, os vizinhos ou parentes dos jovens que fazem os chamados “rolezinhos” são os que têm os empregos mais precários: faxineiros e seguranças terceirizados. Como mão de obra barata, servem, sempre servem! O shopping é mais um dos espaços das cidades brasileiras reservados para o deleite das classes média e alta --servidas pelas ‘classes baixas’....
CM- Retomando, por que o protesto só acontece agora justamente quando se dá a emergência da chamada ‘classe média popular’?
Valquíria- O fato de supostamente uma parcela dos pobres brasileiros estarem aumentando seu poder de compra não significa que eles tenham adquirido o direito de compartilhar os mesmos espaços dos ricos. Eles não possuem o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamaria de “capital cultural”. Dito de outra forma, não basta ter mais dinheiro para ganhar o sentimento de pertença nos espaços dos ricos.
CM- Seria uma evolução natural, a exemplo dos protestos de junho de 2013, de quem não quer ser apenas um mercado de artigos populares e reivindica cidadania plena?
Valqíria - Pensar em acesso aos shopping centers como acesso à cidadania é um grande engano. Sobretudo se entendermos que ser cidadão, nos termos burgueses de nossa organização social, é ter direitos e não apenas deveres. Se pagamos impostos ao Estado, deveríamos ter acesso à uma vida digna, com trabalho, estudo, saúde, cultura, lazer de qualidade. Isso sim é ter cidadania. Mas, a sociedade de consumo – principalmente dos anos 1980 até hoje – nos ensinou a reduzir o conceito de cidadania à esfera do consumo. O cidadão hoje é o consumidor feliz. Isso é uma falácia enorme, um erro que direciona inclusive as ações do governo petista no Brasil. Os pobres passam a ter um pouco mais de renda, mas eles continuam não-cidadãos nos termos a que me refiro aqui.
CM- Há uma confrontação simbólica desses limites em marcha ?
Valquíria - Os shoppings são símbolos de uma sociedade de consumo e de abundância de bens materiais. São símbolos da lógica do “compro, logo existo”. Forçar o acesso a esses espaços – que a periferia sabe que não lhe pertence - é um ato simbólico para dizer: “quando a gente vem aqui a gente incomoda os burguesinhos que historicamente nos desprezam”. Uma longa história de invisibilidade vivida pelos pobres no Brasil está vindo à tona com essas “invasões” dos shoppings centers. Os pobres nunca são verdadeiramente vistos ou ouvidos pelas autoridades públicas e pelos patrões. Esses movimentos chamados de “rolezinhos” são, na minha interpretação, uma tentativa de furar a barreira da invisibilidade a que esses jovens pobres estão sujeitos na nossa sociedade de classes.
CM - Generalizar a ‘receita shopping’ para as grandes metrópoles brasileiras é tão viável quanto estender aos postinhos de saúde o padrão do hospital Albert Einstein, em SP (um shopping da saúde). Estamos diante de uma contradição insolúvel: a propaganda adestra o imaginário social a exigir o melhor e agora barra quem aderiu ao sonho?
Valquíria - O que sempre me entristeceu é ver essa crença generalizada de que pertencer ao shopping center é alcançar a boa vida. Essa é uma vitória da sociedade de consumo e um fracasso da humanidade. Os adultos, jovens e crianças de hoje foram totalmente cooptados pela crença alienada de que só é possível ser feliz assim. Discutir isso hoje é visto como ridículo, já que essa ideologia consumista transformou-se numa verdade absoluta. Propor discussões críticas da sociedade de consumo, da publicidade, do capitalismo ainda é ridicularizado pela mídia e pelos intelectuais de direita. Somos nós, os pensadores marxistas e de esquerda que devemos mostrar como esse desejo de um mundo mais justo e menos desigual deve ser elaborado para gerar ações definitivas no que diz respeito à igualdade social. Não é nada fácil. As classes dominantes são fortes, poderosas e violentas – sobretudo no Brasil. Os pobres terão que entender que consumindo as roupas de marca e os equipamentos eletrônicos dos ricos, eles não vão conquistar a liberdade ou a emancipação.
CM—Mas é essa aspiração que os move...
Valquiria - O desejo e a posse de mercadorias nos alienam a todos. No entanto, é óbvio que, num primeiro momento, esse impulso pode parecer revolucionário. Quando eu critico a segregação social dos shoppings centers não desejo como solução que esses espaços sejam democratizados, mesmo porque eu não acredito nisso. Desejo que esses espaços sejam eliminados.
CM- Como ?
Valquíria- Que sejam substituídos por parques, espaços de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos igualmente. Uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica precisa disso, e não de shopping centers... Esse fenômeno dos “rolezinhos” não aconteceria na Finlândia ou na Dinamarca.
CM— Essa reciclagem dos shoppings em espaços culturais seria a utopia de um rolezinho ideal?
Valquíria - Qualquer solução que propomos na contramão da ordem vigente tem status de utopia, tamanha é a complexidade social. A publicidade é a espinha dorsal desse sistema. Ela é a maior descoberta e o maior trunfo da sociedade de consumo capitalista, pois consegue manipular os desejos, criar necessidades, reduzir sentimentos. E mais: ela atinge a todos da mesma forma: ricos e pobres, quem vive na cidade e quem vive no campo, crianças e adultos etc.
CM—Os rolezinhos tem fôlego para avançar nessa contestação?
Valquíria - Onde esses movimentos dos “rolezinhos” vão dar eu não sei dizer. Não sou otimista no sentido de imaginar que isso vai fazer com que nossa sociedade deixe de segregar e seja mais justa em curto ou médio prazo. Mas, acho que é um começo e a discussão que surge traz o tema da desigualdade social para a mesa.
Assim como os movimentos de junho de 2013, pode se somar a outras manifestações de insatisfação, provocando, pouco a pouco, novas formas de reflexão sobre o capitalismo e sobre nosso sistema político. Gosto de ver os pobres organizados para incomodar os ricos, forçando-os a enxergar uma realidade que eles insistem em negar ou que ridicularizam.
CM- Que resposta o urbanismo pode dar a essa revolta ainda bem comportada?
Valquíria - Na ordem do capital, não acredito em nenhuma resposta definitiva. Humanizar o capitalismo, ao menos, seria possível, mas não concordo que apenas oferecer mais políticas públicas de lazer e cultura nas periferias seja a solução, pois continua aí a segregação dos espaços urbanos, a cidade continua dividida entre espaços para pobres e espaços para ricos. Isso não é solução, é paliativo.
CM - A Justiça de SP concedeu a 6 shoppings da capital o direito de selecionar o acesso. É um novo degrau do antagonismo público -privado no país?
Valquíria - Os juízes que deram essas sentenças deveriam perder o direito de julgar se nosso país fosse sério e cumprisse a Constituição. É um absurdo autorizar o inautorizável. Um juiz não poderia permitir que um espaço aberto ao público pudesse segregar. Discriminação é ilegal. Racismo é crime inafiançável no Brasil. Esses juízes deveriam ser presos. Os donos desses shoppings também.
CM - É só no Brasil ou o padrão segregacionista se repete em shoppings de outros países também?
Valquíria - Em outros países não é assim. Eu morei na França e no Canadá e lá os shoppings são abertos a todos, porque eles respeitam a Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Nos países em que há desigualdade social extrema, a segregação e a discriminação são mais evidentes. Os “rolezinhos” só estão causando tanto alvoroço porque somos um país de desiguais. Enquanto cada grupo fica na sua, com seus “irmãos” de classe e respeitam as fronteiras invisíveis e visíveis, não há conflitos. Os conflitos surgem quando uma das partes resolve confrontar as barreiras. Se não houvesse esse abismo entre pobres e ricos, não estaríamos discutindo isso, não é? Sugiro que se assista ao documentário ‘Hiato’, que conta como os movimentos de sem-teto e sem-terra organizaram uma visita a um shopping no Rio. É pedagógico.
São Paulo - A socióloga Valquíria Padilha não se surpreendeu com o fenômeno dos rolezinhos. Professora de Sociologia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade , na USP de Ribeirão Preto, ela lançou em 2006 um livro premonitório, “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo, 2006). Nele sublinha o papel segregacionista desses bunkers do consumo que, em sua opinião jamais serão democratizados. Autora também de outras obras que remetem diretamente à busca de identidade implícita na adesão da juventude pobre aos rolezinhos (são dela: “Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito” (Alinea); “Dialética do lazer” (organizadora; Cortez) , Valquíria desabafa: a identificação de cidadania com consumo ‘é o fracasso da humanidade’. A seguir, trechos de sua entrevista a Carta Maior
Carta Maior: Shopping center -consumismo -desigualdade e exclusão urbana interligam-se há muito tempo nas grandes cidades brasileiras. Por que só agora a coisa explodiu na forma de rolezinhos?
Valquíria: Eu venho afirmando que os shopping centers são espaços privados travestidos de públicos desde que publiquei o meu livro “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo), em 2006. São espaços de compras que segregam, impedindo a entrada de quem não tem poder aquisitivo ou de quem não se adequa ao ambiente dos shoppings – seja pelo modo de se vestir ou pelo modo de agir. Recebi muitas críticas por afirmar isso. Agora estamos vendo as provas: pobres não devem compartilhar os shoppings centers com os ricos.
CM: O marketing da segurança dos shoppings traz a segregação no DNA?
Valquíria: Eles funcionam como os clubes privados, as escolas privadas, os hospitais privados: são bunkers onde as classes mais altas devem se sentir protegidas do mundo real que fica do lado de fora. Isso só é possível com a exclusão de todos aqueles que supostamente significam alguma ameaça, ou seja, que tragam a realidade do lado de fora – a desigualdade social - para essa ilha da fantasia. Shoppings são templos do consumo para poucos. Sempre foi assim no Brasil, desde os anos 1960-70 quando tivemos nossos primeiros shoppings.
CM- O problema não está só no Shopping...
Valquíria- Tudo isso ganha um contorno próprio quando analisamos a organização urbana de nossas cidades brasileiras - indubitavelmente pautada na segregação social e econômica: há os espaços de quem tem dinheiro e há os espaços de quem não tem. Quem não tem normalmente trabalha para os que têm. No caso dos shoppings, os vizinhos ou parentes dos jovens que fazem os chamados “rolezinhos” são os que têm os empregos mais precários: faxineiros e seguranças terceirizados. Como mão de obra barata, servem, sempre servem! O shopping é mais um dos espaços das cidades brasileiras reservados para o deleite das classes média e alta --servidas pelas ‘classes baixas’....
CM- Retomando, por que o protesto só acontece agora justamente quando se dá a emergência da chamada ‘classe média popular’?
Valquíria- O fato de supostamente uma parcela dos pobres brasileiros estarem aumentando seu poder de compra não significa que eles tenham adquirido o direito de compartilhar os mesmos espaços dos ricos. Eles não possuem o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamaria de “capital cultural”. Dito de outra forma, não basta ter mais dinheiro para ganhar o sentimento de pertença nos espaços dos ricos.
CM- Seria uma evolução natural, a exemplo dos protestos de junho de 2013, de quem não quer ser apenas um mercado de artigos populares e reivindica cidadania plena?
Valqíria - Pensar em acesso aos shopping centers como acesso à cidadania é um grande engano. Sobretudo se entendermos que ser cidadão, nos termos burgueses de nossa organização social, é ter direitos e não apenas deveres. Se pagamos impostos ao Estado, deveríamos ter acesso à uma vida digna, com trabalho, estudo, saúde, cultura, lazer de qualidade. Isso sim é ter cidadania. Mas, a sociedade de consumo – principalmente dos anos 1980 até hoje – nos ensinou a reduzir o conceito de cidadania à esfera do consumo. O cidadão hoje é o consumidor feliz. Isso é uma falácia enorme, um erro que direciona inclusive as ações do governo petista no Brasil. Os pobres passam a ter um pouco mais de renda, mas eles continuam não-cidadãos nos termos a que me refiro aqui.
CM- Há uma confrontação simbólica desses limites em marcha ?
Valquíria - Os shoppings são símbolos de uma sociedade de consumo e de abundância de bens materiais. São símbolos da lógica do “compro, logo existo”. Forçar o acesso a esses espaços – que a periferia sabe que não lhe pertence - é um ato simbólico para dizer: “quando a gente vem aqui a gente incomoda os burguesinhos que historicamente nos desprezam”. Uma longa história de invisibilidade vivida pelos pobres no Brasil está vindo à tona com essas “invasões” dos shoppings centers. Os pobres nunca são verdadeiramente vistos ou ouvidos pelas autoridades públicas e pelos patrões. Esses movimentos chamados de “rolezinhos” são, na minha interpretação, uma tentativa de furar a barreira da invisibilidade a que esses jovens pobres estão sujeitos na nossa sociedade de classes.
CM - Generalizar a ‘receita shopping’ para as grandes metrópoles brasileiras é tão viável quanto estender aos postinhos de saúde o padrão do hospital Albert Einstein, em SP (um shopping da saúde). Estamos diante de uma contradição insolúvel: a propaganda adestra o imaginário social a exigir o melhor e agora barra quem aderiu ao sonho?
Valquíria - O que sempre me entristeceu é ver essa crença generalizada de que pertencer ao shopping center é alcançar a boa vida. Essa é uma vitória da sociedade de consumo e um fracasso da humanidade. Os adultos, jovens e crianças de hoje foram totalmente cooptados pela crença alienada de que só é possível ser feliz assim. Discutir isso hoje é visto como ridículo, já que essa ideologia consumista transformou-se numa verdade absoluta. Propor discussões críticas da sociedade de consumo, da publicidade, do capitalismo ainda é ridicularizado pela mídia e pelos intelectuais de direita. Somos nós, os pensadores marxistas e de esquerda que devemos mostrar como esse desejo de um mundo mais justo e menos desigual deve ser elaborado para gerar ações definitivas no que diz respeito à igualdade social. Não é nada fácil. As classes dominantes são fortes, poderosas e violentas – sobretudo no Brasil. Os pobres terão que entender que consumindo as roupas de marca e os equipamentos eletrônicos dos ricos, eles não vão conquistar a liberdade ou a emancipação.
CM—Mas é essa aspiração que os move...
Valquiria - O desejo e a posse de mercadorias nos alienam a todos. No entanto, é óbvio que, num primeiro momento, esse impulso pode parecer revolucionário. Quando eu critico a segregação social dos shoppings centers não desejo como solução que esses espaços sejam democratizados, mesmo porque eu não acredito nisso. Desejo que esses espaços sejam eliminados.
CM- Como ?
Valquíria- Que sejam substituídos por parques, espaços de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos igualmente. Uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica precisa disso, e não de shopping centers... Esse fenômeno dos “rolezinhos” não aconteceria na Finlândia ou na Dinamarca.
CM— Essa reciclagem dos shoppings em espaços culturais seria a utopia de um rolezinho ideal?
Valquíria - Qualquer solução que propomos na contramão da ordem vigente tem status de utopia, tamanha é a complexidade social. A publicidade é a espinha dorsal desse sistema. Ela é a maior descoberta e o maior trunfo da sociedade de consumo capitalista, pois consegue manipular os desejos, criar necessidades, reduzir sentimentos. E mais: ela atinge a todos da mesma forma: ricos e pobres, quem vive na cidade e quem vive no campo, crianças e adultos etc.
CM—Os rolezinhos tem fôlego para avançar nessa contestação?
Valquíria - Onde esses movimentos dos “rolezinhos” vão dar eu não sei dizer. Não sou otimista no sentido de imaginar que isso vai fazer com que nossa sociedade deixe de segregar e seja mais justa em curto ou médio prazo. Mas, acho que é um começo e a discussão que surge traz o tema da desigualdade social para a mesa.
Assim como os movimentos de junho de 2013, pode se somar a outras manifestações de insatisfação, provocando, pouco a pouco, novas formas de reflexão sobre o capitalismo e sobre nosso sistema político. Gosto de ver os pobres organizados para incomodar os ricos, forçando-os a enxergar uma realidade que eles insistem em negar ou que ridicularizam.
CM- Que resposta o urbanismo pode dar a essa revolta ainda bem comportada?
Valquíria - Na ordem do capital, não acredito em nenhuma resposta definitiva. Humanizar o capitalismo, ao menos, seria possível, mas não concordo que apenas oferecer mais políticas públicas de lazer e cultura nas periferias seja a solução, pois continua aí a segregação dos espaços urbanos, a cidade continua dividida entre espaços para pobres e espaços para ricos. Isso não é solução, é paliativo.
CM - A Justiça de SP concedeu a 6 shoppings da capital o direito de selecionar o acesso. É um novo degrau do antagonismo público -privado no país?
Valquíria - Os juízes que deram essas sentenças deveriam perder o direito de julgar se nosso país fosse sério e cumprisse a Constituição. É um absurdo autorizar o inautorizável. Um juiz não poderia permitir que um espaço aberto ao público pudesse segregar. Discriminação é ilegal. Racismo é crime inafiançável no Brasil. Esses juízes deveriam ser presos. Os donos desses shoppings também.
CM - É só no Brasil ou o padrão segregacionista se repete em shoppings de outros países também?
Valquíria - Em outros países não é assim. Eu morei na França e no Canadá e lá os shoppings são abertos a todos, porque eles respeitam a Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Nos países em que há desigualdade social extrema, a segregação e a discriminação são mais evidentes. Os “rolezinhos” só estão causando tanto alvoroço porque somos um país de desiguais. Enquanto cada grupo fica na sua, com seus “irmãos” de classe e respeitam as fronteiras invisíveis e visíveis, não há conflitos. Os conflitos surgem quando uma das partes resolve confrontar as barreiras. Se não houvesse esse abismo entre pobres e ricos, não estaríamos discutindo isso, não é? Sugiro que se assista ao documentário ‘Hiato’, que conta como os movimentos de sem-teto e sem-terra organizaram uma visita a um shopping no Rio. É pedagógico.
Valquíria - Os shoppings são símbolos de uma sociedade de consumo e de abundância de bens materiais. São símbolos da lógica do “compro, logo existo”. Forçar o acesso a esses espaços – que a periferia sabe que não lhe pertence - é um ato simbólico para dizer: “quando a gente vem aqui a gente incomoda os burguesinhos que historicamente nos desprezam”. Uma longa história de invisibilidade vivida pelos pobres no Brasil está vindo à tona com essas “invasões” dos shoppings centers. Os pobres nunca são verdadeiramente vistos ou ouvidos pelas autoridades públicas e pelos patrões. Esses movimentos chamados de “rolezinhos” são, na minha interpretação, uma tentativa de furar a barreira da invisibilidade a que esses jovens pobres estão sujeitos na nossa sociedade de classes.
CM - Generalizar a ‘receita shopping’ para as grandes metrópoles brasileiras é tão viável quanto estender aos postinhos de saúde o padrão do hospital Albert Einstein, em SP (um shopping da saúde). Estamos diante de uma contradição insolúvel: a propaganda adestra o imaginário social a exigir o melhor e agora barra quem aderiu ao sonho?
Valquíria - O que sempre me entristeceu é ver essa crença generalizada de que pertencer ao shopping center é alcançar a boa vida. Essa é uma vitória da sociedade de consumo e um fracasso da humanidade. Os adultos, jovens e crianças de hoje foram totalmente cooptados pela crença alienada de que só é possível ser feliz assim. Discutir isso hoje é visto como ridículo, já que essa ideologia consumista transformou-se numa verdade absoluta. Propor discussões críticas da sociedade de consumo, da publicidade, do capitalismo ainda é ridicularizado pela mídia e pelos intelectuais de direita. Somos nós, os pensadores marxistas e de esquerda que devemos mostrar como esse desejo de um mundo mais justo e menos desigual deve ser elaborado para gerar ações definitivas no que diz respeito à igualdade social. Não é nada fácil. As classes dominantes são fortes, poderosas e violentas – sobretudo no Brasil. Os pobres terão que entender que consumindo as roupas de marca e os equipamentos eletrônicos dos ricos, eles não vão conquistar a liberdade ou a emancipação.
CM—Mas é essa aspiração que os move...
Valquiria - O desejo e a posse de mercadorias nos alienam a todos. No entanto, é óbvio que, num primeiro momento, esse impulso pode parecer revolucionário. Quando eu critico a segregação social dos shoppings centers não desejo como solução que esses espaços sejam democratizados, mesmo porque eu não acredito nisso. Desejo que esses espaços sejam eliminados.
CM- Como ?
Valquíria- Que sejam substituídos por parques, espaços de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos igualmente. Uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica precisa disso, e não de shopping centers... Esse fenômeno dos “rolezinhos” não aconteceria na Finlândia ou na Dinamarca.
CM— Essa reciclagem dos shoppings em espaços culturais seria a utopia de um rolezinho ideal?
Valquíria - Qualquer solução que propomos na contramão da ordem vigente tem status de utopia, tamanha é a complexidade social. A publicidade é a espinha dorsal desse sistema. Ela é a maior descoberta e o maior trunfo da sociedade de consumo capitalista, pois consegue manipular os desejos, criar necessidades, reduzir sentimentos. E mais: ela atinge a todos da mesma forma: ricos e pobres, quem vive na cidade e quem vive no campo, crianças e adultos etc.
CM—Os rolezinhos tem fôlego para avançar nessa contestação?
Valquíria - Onde esses movimentos dos “rolezinhos” vão dar eu não sei dizer. Não sou otimista no sentido de imaginar que isso vai fazer com que nossa sociedade deixe de segregar e seja mais justa em curto ou médio prazo. Mas, acho que é um começo e a discussão que surge traz o tema da desigualdade social para a mesa.
Assim como os movimentos de junho de 2013, pode se somar a outras manifestações de insatisfação, provocando, pouco a pouco, novas formas de reflexão sobre o capitalismo e sobre nosso sistema político. Gosto de ver os pobres organizados para incomodar os ricos, forçando-os a enxergar uma realidade que eles insistem em negar ou que ridicularizam.
CM- Que resposta o urbanismo pode dar a essa revolta ainda bem comportada?
Valquíria - Na ordem do capital, não acredito em nenhuma resposta definitiva. Humanizar o capitalismo, ao menos, seria possível, mas não concordo que apenas oferecer mais políticas públicas de lazer e cultura nas periferias seja a solução, pois continua aí a segregação dos espaços urbanos, a cidade continua dividida entre espaços para pobres e espaços para ricos. Isso não é solução, é paliativo.
CM - A Justiça de SP concedeu a 6 shoppings da capital o direito de selecionar o acesso. É um novo degrau do antagonismo público -privado no país?
Valquíria - Os juízes que deram essas sentenças deveriam perder o direito de julgar se nosso país fosse sério e cumprisse a Constituição. É um absurdo autorizar o inautorizável. Um juiz não poderia permitir que um espaço aberto ao público pudesse segregar. Discriminação é ilegal. Racismo é crime inafiançável no Brasil. Esses juízes deveriam ser presos. Os donos desses shoppings também.
CM - É só no Brasil ou o padrão segregacionista se repete em shoppings de outros países também?
Valquíria - Em outros países não é assim. Eu morei na França e no Canadá e lá os shoppings são abertos a todos, porque eles respeitam a Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Nos países em que há desigualdade social extrema, a segregação e a discriminação são mais evidentes. Os “rolezinhos” só estão causando tanto alvoroço porque somos um país de desiguais. Enquanto cada grupo fica na sua, com seus “irmãos” de classe e respeitam as fronteiras invisíveis e visíveis, não há conflitos. Os conflitos surgem quando uma das partes resolve confrontar as barreiras. Se não houvesse esse abismo entre pobres e ricos, não estaríamos discutindo isso, não é? Sugiro que se assista ao documentário ‘Hiato’, que conta como os movimentos de sem-teto e sem-terra organizaram uma visita a um shopping no Rio. É pedagógico.