O dia em que a arte brasileira foi à guerra
Há quem diga que o Brasil só entrou de fato no século 20 – e no mapa da geopolítica global – após enviar soldados para lutar na Segunda Guerra Mundial.
O que poucos sabem é que o envio dos pracinhas da FAB (Força Expedicionária Brasileira) à Itália – um sinal de hard power (poder militar) – foi paralelo a uma jogada de mestre do Brasil no campo do soft power, o uso da cultura para fortalecer a imagem do país no exterior.
Há 71 anos, em novembro de 1944, uma Londres ainda sob as últimas bombas alemãs recebia a primeira exposição coletiva de arte brasileira na Europa.
Obras de mestres do então jovem modernismo brasileiro, como Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Lasar Segall, aportaram em plena Academia Real de Artes, um bastião do conservadorismo artístico.
A mostra - capítulo pouco conhecido da história da arte e das relações exteriores brasileiras – poderá agora vir a ser remontada por iniciativa de um jovem diplomata que abraçou o tema em sua tese de doutorado.
Hayle Gadelha, 32 anos, é chefe do setor cultural da Embaixada do Brasil em Londres. Ao assumir o posto, em agosto de 2014, soube da existência da exposição pelo então embaixador Roberto Jaguaribe, que recebera a dica de um marchand carioca.
"Quando li o catálogo original da exposição, pensei na hora: isso é a coisa mais fascinante que poderei encontrar aqui", disse Gadelha à BBC Brasil.
De fato, até o catálogo da mostra se revelaria peculiar, ao incluir comentários ácidos do crítico de arte Sacheverell Sitwell. "O progresso da pintura tem sido rápido nesse solo fértil, tão rápido que podemos esperar que se torne mais devagar e sério", escreveu o britânico, provavelmente contrariado pela rebeldia estética dos modernistas.
Oferta estratégica
Não era tarefa fácil montar uma exposição em plena guerra - os principais museus de Londres à época, como a Tate e a National Gallery, estavam fechados ou devastados por bombardeios do Eixo.
Um lance diplomático, contudo, viabilizou a mostra. Todos os artistas doaram suas obras, e fechou-se um compromisso: o dinheiro das vendas seria revertido para a Força Aérea Britânica. Em carta publicada à epoca no diário carioca O Jornal, os autores destacaram o "significado moral e simbólico do gesto".
"Foi uma certa artimanha brasileira, pois naquele momento de guerra a exposição se tornou um presente cuja recusa seria indelicada", afirma Gadelha.
Até os custos ficaram com a Coroa britânica. O Brasil bancou o emolduramento das obras, mas todas as despesas restantes - transporte, seguro, montagem - saíram dos cofres do British Council.
Com 168 pinturas e desenhos de 70 artistas, e 162 fotografias de arquitetura brasileira moderna e colonial, a exposição foi aberta em 22 de novembro, e permaneceu em cartaz até 10 de dezembro. Percorreu ainda outras sete cidades britânicas: Norwich, Reading, Manchester, Bristol, Glasgow, Edinburgo e Bath. Na capital, recebeu a visita da rainha Elizabeth (1900-2002), conhecida como rainha-mãe, ainda na primeira semana.
O saldo da exposição surpreendeu: foram vendidas 80 obras, que renderam mais de 800 libras (cerca de R$ 136 mil, pelos valores atuais) para a Royal Air Force britânica.
Embora alguns valores parecessem baixos aos padrões de hoje, estavam dentro das expectativas. Um quadro de Djanira, uma das maiores pintoras do país, saiu por duas libras (ou R$ 340 em preços atuais); um Cícero Dias, por três. Um Portinari foi, de longe, o campeão: 180 libras, pagas por um então jovem Hugo Gouthier, diplomata brasileiro morto em 1992.
Amigo do pintor de Brodowski (SP), Gouthier justificou a compra em carta posterior ao artista. Disse tê-la feito "para evitar que qualquer pessoa comprasse seu quadro, deixando-o segregado num quarto de apartamento".
Entre as obras que ficaram sem comprador estão nomes que hoje valem fortunas, como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Iberê Camargo. As pinturas remanescentes foram cedidas para a exposição inaugural da Unesco (braço da ONU para cultura e educação) em Paris, em 1958, e se espalharam depois pelo mundo.
Arte e canhões
Usada pela primeira vez em 2004 pelo cientista político americano Joseph Nye, a expressão "soft power" (poder suave ou brando, em tradução livre) se refere ao potencial de um país de influenciar por meio de seu poder de inspiração e atração, em contraposição ao poder "duro", militar.
No caso brasileiro naquele contexto do final da Segunda Guerra, era uma tacada simultânea de hard e soft power: enquanto os soldados sem patente da FAB se preparavam para a conquista do Monte Castelo, lembra Gadelha, as obras modernistas desembarcavam na Europa.
Para um país que inicialmente havia declarado neutralidade no conflito, após chegar a flertar com o fascismo, era uma maneira de se posicionar diante do fim do confronto que se avizinhava.
"O (então ministro das Relações Exteriores) Oswaldo Aranha estava por trás desse movimento simultâneo de hard e soft power, pensando no cenário do pós-guerra, era importante que o Brasil estivesse alinhado com os valores democráticos ocidentais", afirma o diplomata.
Para trazer à tona esse momento histórico, Gadelha se enfurnou em arquivos britânicos e brasileiros. Visitou as galerias por onde a exposição passou, conversou com arquivistas, pesquisou jornais de época.
O trabalho, que realiza como parte de seu doutorado no Brazil Institute do King's College de Londres, poderá ainda ter um desdobramento inédito: a remontagem de parte da exposição original.
Gadelha já identificou o paradeiro de 50 das 168 obras originais - metade está no Reino Unido, e as demais em países como Brasil, Portugal, Nova Zelândia e França. A maioria está em galerias ou coleções privadas.
A ideia, que tem o apoio do atual embaixador do Brasil na Grã-Bretanha, Eduardo dos Santos, é mobilizar os organizadores originais da mostra e sensibilizar patrocinadores para viabilizar o projeto, que poderia ter versões em solo inglês e brasileiro.
"Esse foi um dos melhores exemplos do bom uso das artes plásticas como instrumento de soft power. Foi algo marcante, que gostaria que fosse um exemplo a ser retomado no futuro", afirma Hayle Gadelha./Thiago Guimarães - @thiaguima/Da BBC Brasil em Londres